sábado, 17 de novembro de 2012

Pequeno Conto do Velho Manoel




     Do alto do morro, da janela do barraco de lata, ora olhava o céu, outrora os prédios da cidade. Perto do fim da favela, logo ali acima, depois da ultima viela, onde tombou o metalúrgico João de Deus. O velho Manoel ouvia atento, o canto arriscado do sabiá, depois do eco de um tiro de fuzil.
       Sem sair da janela, com os olhos embaçados do tempo, Manoel observava o cheio do vazio, outro tiro de fuzil.  Estalo que ecoa na memória do ancião que fica na janela olhando o começo da viela.  Manoel já não mais se importava em risco de vida. Teus ouvidos ao canto de coragem do sabiá, no resto de mato no alto do morro.
 As tristezas do velho  eram recordações do sorriso matreiro do teu menino, antes de ser calado  no sangue que jorrou, do balaço no peito de Zezinho.
Da mesma janela, Manoel sempre o esperava  chegar da escola, correndo, sorrindo, prestes a mostrar ao velho seus cadernos.
- Vovô, vovô... O velho deixava sua janela, abraçava o garoto na porta, os dois se sentavam na soleira, e juntos iam vendo os novos traços, as paisagens de esperança que surgiam nos riscados do teu menino artista.  
Manoel notou certa vez, ele mesmo na tela retratado, debruçado na janela e o sabiá no teu ombro cantando.
Mas tudo ficou cinza, na dor que não rompe com o tempo, e o menino nunca mais surgiu correndo, não corre mais, nem joga bola na viela, nem sonha ser pintor de tela, não tem abraço na chegada. Choro de ancião é mais doído, que choro de criança pedindo mãe.
Da janela ele olha a multidão, tem jornal, televisão. Um corpinho miúdo jogado ali no chão.   Manoel recorda triste dos dias que tua alegria era à felicidade no sonho do seu menino ser pintor.   Zezinho que sorria sem ter paz, andava pela favela, entre as vielas, tendo que se fazer entender aos marginais:
- Não quero droga não, Pai Manoel disse que vou ser estudado, vou ser pintor de quadros, artista plástico. 
-  Já até pintei a minha triste favela, nem quero ficar doidão igual Zé Bola, que louco de crack acabou na prisão.    Às vezes vinha o camburão, daí o menino tinha que explicar que não é marginal, mas mora na favela.   
O velho Manoel sempre diz que ali tem um tanto de gente trabalhadora, tem o pastor Vicente também, que fala de Jesus pra traficantes e drogados, dedica-se a tirar as meninas da prostituição infantil.  E foi da prostituição que Sara saiu, é assistente social e agora ajuda o pastor nos projetos, comunitários, mas trabalhos comunitários incomodam os políticos e os bandidos. Gente culta fica longe de do mundo marginal, aprende a votar em gente decente.  
Teve consequência amar a Deus e politizar os carentes.  
E certa feita, Zezinho pintou um quadro de dor quando o pastor Vicente chorou na sarjeta, quando de tanto orar, teus joelhos sangravam e teu filhinho não foi poupado de chacina.
 No quadro que Zezinho pintou numa tela de fundo azul céu, havia o pastor transfigurado de dor e, Jesus embalando teu filhinho no colo.  Havia também no mesmo quadro a esposa do pastor que na morte do filhinho enlouquecida blasfemava ao pobre homem de Deus:
 - Onde está o teu Deus? Onde está?  Que não livrou nosso filhinho. E o pastor de rosto em terra e sem saber explicar lavava as lágrima do rosto com lama de enxurrada.    Mas Zezinho notou Jesus com os olhos miúdos embalando o Filhinho de Vicente. 
Mesmo até Jesus na paisagem chorava.
Mas agora veio o camburão da polícia militar e o menino tem que se explicar, o menino que é pintor de telas e que vê Jesus embalar os anjos da favela.
O menino se explica:
- Seu polícia sou neto de Manoel, ele que cuida de mim, papai morreu de balaço, mamãe enlouqueceu de crack, não bate não, estou estudando, vou ser pintor de quadros, já até pintei teu camburão descendo a triste favela. 
- Vovô só tem a mim agora, papai tombou de balaço, foi confundido com marginal, mamãe enlouqueceu na misere, vive por ai e chega tagarelando, que não conseguiu emprego e acho que esta ficando louca, perdeu os dentes, tomou um soco de um vagabundo, no ponto da prostituição, agora todo dia a vejo no quintal, tentando recolocar os dentes no lugar, ficou louca.
- O Senhor tem a mãe louca, seu soldado?  Deixa-me ir, voar meu sonho de ser pintor de quadros.
Mas Manoel tem na memória o dia que os homens de farda chegaram, entraram no seu barraco, pegaram o menino, foram logo fazendo perguntas, queria saber de sei lá, coisas roubadas, informações de pontos de drogas.
Agora o menino tem que se explicar aos homens da lei, novamente.   E o menino dizia chorando:
- Seu polícia, bate não, to estudando... (soluçava e apanhava)
- Uso drogas não, vou ser pintor de quadros, já até pintei a minha triste favela.
Nesse dia Manoel ficou furioso, vendo o menino apanhar, o velho se zangou, tuas mãos tremias e as lágrimas saltaram dos olhos, a alma saltava do peito.    Manoel pegou a telas que o menino pintou, nela estava retratado ele na janela e a triste favela, mostrou aos polícias.
Era arte perfeita, na imperfeição de serem crianças sorrindo no inferno.  Tinha dentre o cenário a viatura da PM, uma criança colocando uma flor no cano do fuzil do soldado.
O soldado era Soares, que também foi morador do lugar e sabe como é a vida aos que nascem em favelas. Com choro incontido, o menino detalhou tua pintura:
A gotícula pequenina, agora era rebento, nos olhos daquele homem que vive entre a profissão, o amor e o ódio. Na tela, era Soares, o soldado que empunhava o fuzil, que na gravura era municiado com uma rosa em botão.  A criança que colocava a flor no cano do fuzil, era Laurinha que parecia anjo de cabelos de cachos dourados.
   A pequenina maninha do soldado, que todas as tardes o esperava no portão, pra correr e saltar no seu abraço.  Soares não se conteve, caiu de rosto no pó, agora, o gigante é pequeno, de olhos miúdos, incontido em dor de alma.
 Laurinha foi vitima de bala perdida, tiro de fuzil, semelhante aos que a PM utiliza nas ações nos morros quando em troca de tiro, no combate ao tráfico.
Foi cena que o Velho Manoel gravou.
Mas agora, seu menino não sobe mais a rua do morro, nem pinta a triste favela. Foi pra o céu morar, cirandar com Laurinha nos braços de Cristo.
O Balaço vazou a mochila, atravessou o peito do menino. As folhas de pinturas de aquarela se espalharam pela viela.
Em baixo da Janela o netinho de Manoel tombou, e o vento foi levando as folhas e suas imagens.  Imagens que ele pintou no aprendizado no projeto da escola.
Entre tantas realidades em retrato de aquarela, o rosto de Soares, a boneca de Laurinha. O sorriso terror do chefe do tráfico, o sonho do amiguinho que ia ser jogador. O retrato do mar, o sol nascendo na distancia.   E na janela olhando o sem fim, retratado o velho cansado Manoel. Que da janela ficava recordando.  No longe mais um tiro de fuzil.
No resto do mato do alto, o sabiá arrisca um canto.



Markus Libra 












Um comentário:

  1. Você consegue fazer a gente viver essa triste realidade, e fazer parte do conto. Poucos tem esta sensibilidade....

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